Opinião

Iraque, 12 anos depois

JÚLIA GARRAIO | 9 anos atrás em 05-03-2015

Alguns meses antes da invasão do Iraque, Amr Moussa, secretário-geral da Liga Árabe, avisava que a guerra abriria as portas do inferno no Médio Oriente.

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Estas palavras deram azo a alguns comentários trocistas por parte dos nossos comentadores, que repetiam até à exaustão o discurso dos neo-conservadores americanos: tratava-se de uma guerra justa que devia ser travada antes de o inimigo ser demasiado forte (e a comparação com a Alemanha de Hitler era recorrente); a estrada para Jerusalém passava por Bagdade (ou seja, a criação de um Estado Palestiniano estaria a ser impedida pelos parcos apoios económicos de Saddam Hussein às famílias dos bombistas palestinianos a quem as casas tinham sido arrasadas por Israel); o derrube da ditadura de Saddam seria seguido de uma época de paz, democracia e prosperidade no Médio Oriente (a teoria do dominó). Foram estas promessas que culminaram na famosa cimeira das Lajes: fazer a guerra justa para criar uma paz duradoira.

Doze anos depois sabemos que não havia armas de destruição massiva, que a opressão do povo palestiniano está para durar e que o Médio Oriente das brutais ditaduras deu lugar a um Médio Oriente de brutais guerras sectárias, de instabilidade política, repressão do Estado, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

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As imagens que por estes dias nos chegam do Iraque fazem as palavras de Amr Moussa soar a profecia. Uma organização terrorista que faz a Al Qaeda quase parecer moderada apoderou-se de vastas partes do país onde semeia o terror: mulheres cristãs e yazidas escravizadas sexualmente, jornalistas e voluntários de organizações humanitárias ocidentais degolados em vídeos de propaganda, um piloto de guerra queimado vivo e a sua agonia celebrada na internet, homossexuais atirados do cimo de prédios, mulheres executadas em público por não usarem roupa “modesta”, museus vandalizados e livros queimados. A estas imagens haveria a juntar outras não menos brutais, mas que interessaram menos aos media ocidentais: mulheres assassinadas pelas ruas de Bagdade por suspeitas de prostituição; massacres de civis xiitas nas zonas tomadas pelo Estado Islâmico; massacres de civis sunitas por milícias xiitas nas zonas reconquistadas ao Estado Islâmico; aumento vertiginoso de malformações em recém nascidos e de doenças degenerativas em cidades que foram alvo de bombardeamentos da aviação norte-americana (como Falluja).

Se a realidade tem sido demasiado cruel para os iraquianos, o mesmo não se poderá dizer em relação aos obreiros da guerra: Bush foi reeleito e desfruta atualmente uma confortável reforma no seu rancho do Texas; Tony Blair dá palestras pagas a peso de ouro pelo mundo fora; Durão Barroso foi catapultado para a Presidência da Comissão Europeia e prepara-se para seguir o exemplo de Blair; Donald Rumsfeld, responsável pelo programa de tortura norte-americano, continua intocável. Apenas Aznar morreu politicamente com os atentados de Madrid. Nestes anos, só os whistleblowers que ousaram denunciar crimes de guerra foram perseguidos implacavelmente pela justiça.

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Tony Blair afirmou recentemente que não se sente responsável pelo caos do Iraque. O debate atual é-lhe de facto favorável: as mudanças na região foram tão profundas e, desde 2011, tão surpreendentes, com revoluções e contra-revoluções, que qualquer discurso de um Ocidente omnipotente esbarra numa realidade muito mais complexa. Para além disso, perante a brutalidade do Estado Islâmico, tornam-se suspeitas as afirmações que possam ser entendidas como desculpabilização de tamanha crueldade. No entanto, se o consenso na indignação é salutar, esse mesmo consenso torna-se perigoso quando barra a discussão política, quando se limita a estabelecer uma linha entre eles, os bárbaros assassinos, e nós, os civilizados indignados, uma linha que em última análise nos reconforta na crença na nossa superioridade moral e cultural e nos permite renunciar a um exercício de democracia fundamental: questionarmos as decisões políticas dos governos ocidentais na região.

 júlia garraio

JÚLIA GARRAIO

Aderente do Bloco de Esquerda. Investigadora do Centro de Estudos Sociais, onde integra o Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz

 

 

 

 

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