Opinião

Direitos sociais e Paz

José João Lucas | 9 anos atrás em 21-11-2014

Estávamos em finais de março de 1967, em plena guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique. A ditadura salazarista, atrofiadora dos direitos fundamentais dos portugueses e dos povos das colónias, julgava­-se eterna e auto legitimada, com várias cumplicidades, designadamente a da maioria da hierarquia católica portuguesa.

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Contudo, aos cidadãos e às cidadãs mais atentos, não passou despercebida a corajosa mensagem do Papa Paulo VI, ao publicar a encíclica ‘Populorum progressio’.

Aí se podia ler que “a paz não se reduz a uma ausência de guerra”, que ela aponta para uma nova ordem “que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens” e que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. Esta mensagem não deixou de ser tomada, na altura, como uma poderosa bandeira por todos e todas, crentes ou não, que combatiam a guerra e ansiavam por uma verdadeira paz, carregada de justiça e de desenvolvimento.

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Algumas décadas antes, já Albert Einstein tinha afirmado: “Peace is not merely the absence of war but the presence of justice, of law, of order —in short, of government.”

Recuando ao século XVII, o filósofo Baruch Spinoza judeu de Amsterdão, de ascendência portuguesa, também afirmara: “Paz não é a ausência de guerra; é uma virtude, um estado mental,uma disposição para a benevolência, confiança e justiça.”

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O que têm de comum estes três pensamentos de épocas e de origens tão diferentes? A paz é inseparável da justiça. E quando se fala em justiça, fala­-se em direitos, em direitos humanos.

Vem isto a propósito da conferência ‘Economia e conflito”, que teve lugar no passado sábado, 15, na Casa da Cultura de Coimbra, inserida numa série de três ‘Conferências Políticas’, promovida pela Câmara Municipal desta cidade, sob o tema geral de ‘O Povo e a Dor’, no âmbito do Centenário da I Guerra Mundial.

Manuel Carvalho da Silva, um dos convidados, salientou a opção dos governantes e dos povos dos países que se envolveram nas I e II Guerras, que, após a vitória, quiseram criar as bases para uma nova sociedade baseada nos direitos sociais. Lembrou que a OIT (Organização Internacional do Trabalho) foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à I Guerra Mundial. De facto, consta do preâmbulo da Constituição da OIT que os representantes dos 9 estados fundadores, foram “moved by sentiments of justice and humanity as well as by the desire to secure the permanent peace off the world”.

Em 1944, em pleno desenvolvimento da II Guerra Mundial, em reunião que envolveu representantes dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores de 41 países, deu-se início a um processo de atualização da referida constituição da OIT, a que foi anexada a conhecida Declaração de Filadélfia. O processo foi concluído em Montreal, em 1946.

A OIT passou, então, a integrar, como agência especializada, a recém ­formada Organização das Nações Unidas (ONU). A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1948, tendo como horizonte de fundo o desejo duma época de paz e um compromisso de que um conflito como aqueles que tinham dilacerado o mundo não se voltaria a repetir.

Uma visão de conjunto sobre este percurso histórico ao longo do tumultuoso século XX, iluminada pelos textos acima referidos, leva­-nos a refletir sobre a relação profunda entre a ausência de direitos sociais, designadamente os laborais, e a guerra, ou, dito doutro modo, entre a proclamação e a observância desses direitos e uma efetiva política de paz.

Ao olharmos para a profunda conflitualidade existente nas nossas sociedades, às escalas nacional e internacional, não podemos deixar de reconhecer uma forte implicação entre os protestos de rua, muitas vezes desesperados, as manifestações violentas, as tensões racistas e xenófobas, os conflitos armados dentro dos estados e entre estados, o envolvimento de vastas regiões em guerras cujo fim não se vislumbra, por um lado, e, por outro, o espezinhamento dos direitos de quem trabalha e de quem entra na incerteza do desemprego e a desproteção dos cidadãos e das cidadãs nos seus direitos humanos mais basilares – à vida, à liberdade, à segurança pessoal, ao trabalho, a uma nacionalidade e a um estado, à saúde, à educação, à proteção social, a uma habitação condigna, ao acesso à justiça, à cultura, ao lazer, etc.

Foi preciso que deflagrassem dois graves conflitos bélicos à escala mundial, de que resultaram milhões de mortos e muitas dezenas de milhões de mutilados, de desalojados e de refugiados para que os ‘senhores do mundo’ se dessem conta de que a consagração na lei e a aplicação, nos vários contextos sociais, dos direitos humanos estavam intimamente ligadas à promoção de sociedades baseadas na paz e na sã convivência entre as pessoas e os povos, enfim, no desenvolvimento – o novo nome da paz.

Creio que a forte amnésia e a tresloucada ação dos governantes atuais à escala global estão a gerar, nas nossas sociedades, picos de conflitualidade cada vez mais intensos e frequentes. Essa conflitualidade não é só a que decorre das normais tensões entre grupos de interesse: ela nasce das grandes fraturas sociais, da exclusão duma vida social digna de setores cada vez mais vastos das populações, da estigmatização de gentes que, desesperadas, acorrem à nossa porta vindos de longínquas paragens e que são repelidas como de peste se tratassem. Está, por todo o lado, a gerar­se um turbilhão gigantesco que empurra cada vez mais pessoas para a pobreza e para a segregação social. Arrisco a dizer que o êxito do recrutamento, em sociedades ocidentais, para as ações de terrorismo que proliferam no Médio Oriente se alimenta deste caldo, que, sem exagero, se dirá explosivo.

Esta ausência de solidariedade social, este apetite pela efetiva marginalização de muitos concidadãos e concidadãs e esta paranoia de repulsa dos que aqui procuram condições de vida melhores, coexistem, na atualidade, com a pretensa bondade no acolhimento de estrangeiros bilionários, só porque ajudam a ‘encher’ o país de fundos, cujas ‘boas’ origens não estão minimamente asseguradas e cujos benefícios sociais ninguém, objetivamente, garante.

Com uma enorme apreensão, direi que estas políticas nacionais, europeias e mundiais,fundadas na proteção dos negócios, na despromoção dos direitos das pessoas e na utilização dos arsenais de guerra com os pretextos mais banais, seguramente não irão dar certo. Contudo, um outro mundo (ainda) é possível!

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JOSÉ JOÃO LUCAS

­ Membro da Coordenadora Concelhia de Coimbra do BE

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